Cassilândia
Coluna Linguística - O instinto linguístico dos pequenos herdeiros do idioma
*Por Gabriel Pinheiro

Poucas experiências humanas são tão universais quanto observar uma criança aprendendo a falar. O encantamento é inevitável. O balbuciar hesitante, as palavras reinventadas, o esforço cômico de dizer “brinquedo” e o desfecho inevitável: “biguêdo”. Muitos interpretam essa cena como um jogo de imitação, como se a criança estivesse apenas repetindo, do seu jeito, o que escuta ao redor. Mas essa leitura, embora popular, ignora o que realmente está acontecendo no palco invisível da mente infantil.
Antes de produzir frases completas, antes mesmo de conseguir articular certos sons, a criança já compreende muito mais do que é capaz de expressar. Aos dezoito meses, com um vocabulário ativo de cinquenta palavras, ela entende comandos, reage a nomes e diferencia papai de pateta sem vacilar. Esse descomo entre compreensão e produção indica algo essencial: a linguagem, enquanto sistema, começa a operar muito antes de se tornar audível.
O que se descobre, a partir de estudos cuidadosos, é que a criança está em posse de um saber profundo, intuitivo e estruturado. Ela não apenas escuta, mas analisa. Não apenas repete, mas reconstrói. Quando pronuncia “guck” ao tentar dizer “truck”, não está confundindo veículos. Sua percepção fonológica está afiada, embora sua articulação vocal ainda não consiga acompanhar o ritmo da mente. Em muitos casos, a própria criança se irrita ao ouvir o adulto imitar seu erro, sinal claro de que ela reconhece o desvio e já busca, em seu modelo interno, a forma correta.
Essa gramática mental, que se manifesta muito antes da gramática escolar, se revela em detalhes impressionantes. Pesquisadores mostraram que bebês são capazes de distinguir, visualmente, a diferença entre “o personagem A faz cócegas no personagem B” e o inverso, apenas com base na estrutura da frase ouvida. Mesmo sem saber todas as palavras, o pequeno ouvinte reconhece a ordem dos elementos e a função sintática de cada um. Aos dezessete meses, portanto, ele já aprendeu que, em português, o sujeito precede o verbo e o objeto vem depois.
Outro experimento fascinante apresenta à criança uma boneca nova. Ao ouvir “esta é DAX”, ela entende que DAX é um nome. Ao ouvir “esta é uma DAX”, deduz que se trata de uma categoria. Em seguida, quando é convidada a pegar “DAX” ou “uma DAX”, sua escolha revela essa distinção. Curiosamente, se o objeto testado for um embrulho ou uma pedra, a criança não atribui nome próprio, mesmo com a mesma construção. Ela já sabe que certos seres são nomeáveis e outros, não. Um conhecimento sutil, carregado de inferências sociais, e adquirido muito antes do domínio gramatical explícito.
À medida que cresce, a criança começa a testar as regras da língua de forma mais ativa. Quando ouve uma nova palavra, como “wug”, e é convidada a formar o plural, muitas responderão “wugs” sem jamais terem escutado a palavra antes. Outras hesitarão. Algumas aplicarão a regra em excesso, criando formas como “comed” ou “holded”. Há um momento em que a criança parece desaprender, regredindo para erros grotescos que jamais ouviu de um adulto. Mas trata-se, na verdade, de progresso. Ela está descobrindo o padrão por trás das formas e tentando aplicá-lo universalmente, mesmo quando não deveria. Com o tempo, aprenderá as exceções. Por enquanto, está praticando a regra.
Na formação de perguntas, o mesmo fenômeno se repete. Em vez de “por que o gato não consegue subir?”, surgem enunciados como “por que o gato não sobe pode?” ou “por que o gato pode sobe?”. São erros sistemáticos, que obedecem a gramáticas internas transitórias. Fases intermediárias entre o silêncio e a fala adulta. O mesmo vale para negativas como “não o sol brilha” ou “ele não morde você”, que revelam princípios alternativos para a colocação de negação, todos possíveis em línguas naturais, ainda que não em português.
Essas etapas não são variações aleatórias. São versões coerentes, ordenadas, de um sistema em desenvolvimento. A criança, ao que tudo indica, constrói hipóteses gramaticais. Testa estruturas. Observa regularidades. E, mesmo sem receber instruções formais, ajusta-se a um modelo que ela mesma está decifrando em tempo real.
A linguagem não é aprendida por exposição iva. Também não é decorada. Ela é reconstruída por um processo ativo de modelagem. Há regras, há exceções e há um organismo preparado para lidar com ambas. O cérebro infantil, diante de dados linguísticos limitados, consegue extrair padrões complexos, aplicar regras produtivas e, com o tempo, integrar as exceções. Isso é mais do que aprendizagem. É um instinto com método.
No fundo, aprender a falar é um processo de descoberta estrutural. Cada erro revela uma regra em construção. Cada acerto precoce confirma a potência de uma mente que, desde cedo, opera com abstrações gramaticais que nenhum adulto precisou ensinar. Não se trata de repetir o que foi ouvido, mas de decifrar o que está por trás. Uma façanha que começa no silêncio e termina com o mundo inteiro dito em palavras.
*Gabriel Pinheiro é professor, psicopedagogo e mestrando em Linguística pela Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp